quarta-feira, 17 de abril de 2013

Rodrigo e as Canções do Estúdio Realidade: em 4 atos e 2 desvios.

Por João de Carvalho
I - introdução

O Rodrigo Garcia Lopes está lançando seu segundo disco: Canções do Estúdio Realidade (C.E.R.). Ele, que também é poeta, tradutor e editor da revista Coyote, toma emprestado diretamente de um dos ícones da contracultura norte-americana, William Burroughs, a expressão "estúdio realidade". O lançamento deste álbum marca um período de colheita para o autor,  que lançará ainda este ano um livro de poemas (Estúdio Realidade, pela 7Letras, do Rio) e em 2014 um romance policial (O Trovador), além de shows com o repertório do disco e vídeo-clipes (os primeiros, que já estam em fase de produção, são das canções New York e Quaderna, dirigidos por Anderson Craveiro).
Viabilizado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PROMIC Londrina), o projeto contou com a presença marcante do multi-instrumentista  André Siqueira, que, munido de um time composto por 13 músicos locais, traduziu, ou melhor, transcriou várias potencialidades harmônicas, rítmicas e texturais já presentes no violão de Rodrigo.

Mas, como a própria apresentação do disco (feita por Arrigo Barnabé) já prenuncia, ao falarmos de coisas técnicas ¨logo vamos nos perdendo¨. Em outras palavras, C.E.R.  é um trabalho tão rico em sonoridades, poesia e modos de dizer (como já foi apontado pelo certeiro Luiz Tatit) que, se começarmos a elencá-las vamos desfiando um novelo sem fim. Então, se você estiver querendo escutar um disco com arranjos instrumentais finos e de bom gosto, estruturas de canção pouco comuns, ricos encadeamentos fônicos, belas e sugestivas imagens (isto mesmo, escutar imagens)  e contemplar a dança que as palavras realizam no intelecto, este álbum é um prato cheio!

Só que não pára por aqui não. O CD é um livreto belíssimo, com fotos e citações inspiradoras. E aí podemos apreciar o brilhante trabalho do Marcos Losnak (parceiro Coyote), Beto e de Elisabete Ghisleni (fotos). Cada faixa do disco vem acompanhada, num delicado contraponto, com uma fotografia. E ainda tem mais. Tudo isso pode ser conferido de maneira interativa e gratuita no endereço eletrônico www.revistazunai.com/rgarcialopes/cancoes/ . Ali você pode conferir inclusive um comentário faixa a faixa com o próprio autor. Bem, se você ainda não escutou, vai lá e invista uns 50 minutos do seu tempo. Depois volta aqui...  

II – dois desvios

Não sei você, mas eu fiquei cheio de dúvidas com este disco. Acho que elas começam em “quem é o Rodrigo?”, caminham por “o que é Londrina?” e chegam até um “para que canções?”.

--- desvio nº1 ---

Acho que devo começar assim: 

Eu, João de Carvalho, nasci em 1984, nunca sai do Brasil, nem o conheço muito bem, não falo inglês... no ano em que eu nasci o Rodrigo estava morando em Londres, como trabalhador ilegal, e comprou algumas cerejas em uma banca de frutas para matar sua fome. Uns vinte anos depois estou eu em Londrina buscando saber o que havia de literatura e poesia na cidade, foi quando trombei com o nome Rodrigo Garcia Lopes, e "Cerejas" foi um dos primeiro poemas que li. Lembro de ter ficado um bom tempo relendo aquelas palavras sem encontrar um sentido claro e, por fim, pensar sobre o que levava alguém a escrever aquilo. Mas naquela época eu ainda não sabia que o Bashô recomendava “do orvalho  / nunca esqueça  / o branco gosto solitário” (via Leminski)... Hoje, ao escutar a sexta faixa do C.E.R., e perceber a musicalidade daquelas palavras encadeada em um ritmo de blues, penso que
                                                         canções são mesmo bolas grudentas lançadas ao tempo.

Elas tem a capacidade de aderir significados com o passar dos anos e dos eventos...
                                              ficam girando em torno da gente...
e interessante é notar como elas, ao se dividirem,
                                                                                           entre vários individuos,
                         multiplicam a sua massa. 

Penso tb no papel do tradutor... no fundo todo artista é um tradutor...
alguém que viaja e nos brinda com aromas de outros cantos.                          traduzir é isso
                                                                                                               fazer pontes
                                           talvez...
---

Eu sempre digo aos alunos que cancionista esperto não compõe canção.
                                               Cancionista esperto compõe repertório;
                          seja um encadeamento específico de show ou um específico de disco.

: O grande lance está em fazer as canções conversarem entre si.

A escuta do álbum C.E.R. começa com a apreciação da capa.
Existe um personagem e um violão por entre uma névoa verde
provocada pelo desfoque de alguma vegetação.
Este sujeito espreita,
e está à ponto de assaltar uma ilha de edição do nosso estúdio realidade.


--- desvio nº2 ---

C.E.R. é um disco embebido de Londrina.

“... um arraial cercado por uma densa massa de floresta que se estendia no horizonte escarlate. No verão, a umidade que escapava da mata sufocava os habitantes. Quem adentrava o maciço sombrio de altas árvores voltava encharcado de um suor pegajoso. Ingleses, alemães, russos, dinamarqueses sofriam com o clima da “selva do Três Bocas”, onde campeavam moléstias silvestres. Nos fins  de tarde era possível ver os funcionários estrangeiros da Companhia de Terras lastimando a mata.” (Maurício Arruda Mendonça).

O cosmopolitismo apontado por Leminski (1985) em Rodrigo ainda permanece, e o principal diálogo musical que o autor faz é justamente com o jazz e seus derivados. Mas isso tem a cara de Londrina – ou de uma parte dela. A influência da arte japonesa, sua economia de meios e sua visualidade, também é marcante na lírica que permeia o álbum. E, novamente, mais um traço desta terra que tem uma das colonias japonesas mais significativas do país.

 A Trilogia do Esquecimento
                                                    Rodrigo Grota
                                  Kinoarte


Haruo Ohara  ;  seu olhar descende da poesia mínima.



O haicai de Nenpuku Sato explica nosso fotógrafo mor.

Booker Pittman

Jazz e entretenimento na terra do café

Satori Uso
persona síntese beat pé-vermelho
                                                                     Londrina,
a mais rápida das bandas de cá

---

Voltando, enfim, ao disco...
                                                     eu vim parar aqui por causa da vegetação...
   qualquer lugar onde se firme a vista tem a cor verde...
                     Londrina parece que brota do meio do mato. Isto tudo está no disco...

                                               Mas o disco é um disco de viagem! lugares diversos ... nômade.
               Não de Londrina,
p#$$%!

Sim,
                                mas o olhar
         e os ouvidos                       que registrou essas viajens
                                                                                                        foi feito em meio a estes pinheirais.


III – algumas percepções faixa a faixa:

O disco abre com Quaderna. Quatro compassos quaternários. Porém, existe um deslocamento rítmico na idéia inicial que transforma a repetição em cama para a diferença. É o que ocorre também com as estrofes que, sendo compostas em quadras, com excessão da última, sabotam a redondilha maior, proposta pelo primeiro verso, com uso de metros irregulares. Os temas elencados em cada um dos versos também sacaneiam a estruturação lógica, pois quase nunca apresentam uma situação de correspondência obrigatória com o número quatro... (por ex., compassos podem ser quaternários, ou binários, ou ternários...) ... mas tudo isso prepara a ideia central: a escolha, e a composição de um próprio enredo para a vida.

A segunda faixa, Ninguém Melhor Que Ela, é uma versão da canção tema do 007 de 1977. Pode não parecer, mas ela é mais do que uma simples canção de amor.  Temos aqui um jogo de espionagem entre o desejo e o amor. É bem bonito o espelhamento entre as estrofes, na primeira ela guarda os segredos dele, na segunda ele guarda os truques dela... o arranjo, muito delicado e bonito, tem ares de "foto BP" e "espionagem"... um baita climão! ... quem arranhar um violãozim pode arriscar tocá-la com acordes simples, também fica bonita e a aproxima de uma pegada  mais "brega brasileiro", meio tremendão ou Odair José, muito propício para este tipo de Gaia-Ciência (isso é sério, não estou tirando onda...). Ps.: o foto é linda, mas dá pra rir quando lembramos que se trata de uma "maria sem-vergonha"... bem, afinal, são leituras!

Alba é a canção praieira do disco. O mar sempre nos ensinando sobre a real dimensão das coisas. Essa percepção é fundamental para nos colocar no nosso devido lugar. O jogo final da letra, “vida breve  / curto o dia”, nos faz lembrar ainda que começamos essa viagem sob o signo de Quaderna; da responsabilidade sobre traçar o próprio enredo de nossa única vida.

O primeiro quarteirão do disco se encerra com Vertigem (Um Corpo que Cai). Aqui temos a canção mais cinematográfica do disco. A melodia das estrofes é composta partindo de motivos em zigue-zague sobre uma harmonia dissonante. Esta melodia, associada ao desenrolar gradativo da letra e do arranjo, cria um clima de tensão e contensão que se rompe na palavra “vertigem”, acentuando o conteúdo passional do refrão, que parece cair... uma associação com o perfil melódico desendente. *na última vez que o refrão é apresentado aparece uma segunda voz, do próprio Rodrigo, que canta uma melodia em movimento contrário... isso parece, da maneira como é feito, agravar a sensação de  desencontro e angústia dos personagens.
Fugaz. A palavra "vertigem" volta para a cena. O estranhamento da viagem. Toda a beleza é fugaz... Que foto mais linda! Nossa! Dá para ficar procurando formas aí... . O texto é apresentado de forma declamada para, somente na re-exposição, entregar a melodia. A arte querendo eternizar o instante...  
Sobre Cerejas eu já disse um pouco. Esse poema interrogação ficou uma delícia de cantarolar com essa melodia... a parte B apresenta a leitura dos negritos originais. E poder escutar o Casagrande com seu vibrafone é sempre uma grande oportunidade.
Álibis começa com o verso "Pela trilha sem folhas". Pra quem não conhece, "trilha forrada de folhas  / sem saber o leste e o oeste  / japonês que chega aqui"... Nenpuku Sato, via Maurício Arruda Mendonça. ... O primeiro verso revela uma estação do ano (ou da vida). Depois vem o desterro, "água bebida num trem" (Fugaz). E esse verão passeando de novo pelo disco.
Assim como o que ocorre em Fugaz, em que a canção ajusta uns versos do poema original, Rito faz algumas alterações no poema original. A mais evidente é a supressão da palavra "cobranças", porém uma escuta mais atenta revela que existe um outro plano de pontuações no canto... a frase central não soa como uma pergunta... existe uma interrogação após o "lembra" do primeiro verso da última estrofe ... e a interrogação final vira uma espécie de ponto (ou três pontos). Pra mim essa é uma das canções mais bonitas do disco. Acho linda a primeira sequência de rimas em "isso", é um som meio soturno... uma canção triste, sem dúvida. Aquela alteração que eu mencionei, da dúvida que vira afirmação (precisa de centro!) acho uma transformação linda... a melodia gira em torno de uma nota, um centro... gosto ainda mais porque a letra registrada no encarte traz a interrogação. É nítido o contraste desta canção com as que vieram antes... aqui já não acontecem explosões por simples fagulhas. E a foto fecha um afeto fantástico!
Fechamos o segundo quarteirão. Adeus abre as portas das parcerias. Aqui, um poema do Paulo Leminski. Rodrigo foi muito feliz em sua versão para esse poema de despedida. Essa canção com levada funk ressalta uma espécie de humor em meio à amargura do que é dito. Lembram daquela história da canção bola grudenta ao tempo? Essa foi feita na década de 1990. Nessa época o poema "Rito" ainda não existia. Nessa época o Rodrigo ainda podia abraçar seu pai e sua mãe... Provavelmente essa canção já está enorme; deve ter grudado tantos significados nestes quase vinte anos de existência... Uma canção de desprendimento. Pra dançar!
Iluminações é uma canção exemplar. Parceria com o Bernardo Pellegrini. Tem um certo clima de "clube da esquina" (perdoe-me fazer comparações, coisa de redator chinfrim, mas acho que isso colabora com o clima e situações em questão). Casa de madeira ... quem foi que disse! ... o chão cede, ora! ... (pra mim, inclusive, é a "casa de mata-junta", da rua da Carioca - pra quem boiou, ver Londrinenses, no último conto). Essa canção capta os elementos certos de uma atmosfera de república em meio à sonhos e esperanças. É lindo cantar isso nesse momento do disco. Lembrar dos sonhos... reanimá-los através do canto.
Butterfly. É, compor em inglês é assim, mano! Classe essa canção. Uma pequena pérola capturada pela Neuza Pinheiro em forma de melodia. Essa canção é  tão delicada quanto a bela borboleta descrita. Cada verso com um som especial... melopéia, fanopéia, logopéia... tá tudo aí. Uma explosão quase muda.
New York. A última faixa do disco, um "tipo um rap", pra lembrar a formulação do Chico Buarque sobre as canções de seu último disco, funkeado. O arranjo feito pela banda "Cinemática", partindo do violão original de Rodrigo, reforça as intenções expressivas do canto falado do autor. O que mais distancia essa canção de um rap tradicional não é de forma alguma o arranjo, ou mesmo a tendência mais lírica do que épica ou dramática. O que de fato faz com que pensemos que aqui não se trata de um rap é a falta de engajamento comunitário. É o não pertencimento desse sujeito que canta ao ambiente descrito. Ainda é uma canção de passagem, de estranhamento.
IV - pequena ressalva.
me causa um certo desconforto pensar que "a cara de Londrina" seja mesmo este cosmopolitismo de pioneiros.   essa é a "cara de uma certa Londrina", central, estudada... cultura, penso, é mais do que isso... Família IML (que acabou), rap nacional de responsa, pé-vermelho... um amigo me contou como os caras ficaram felizes de tocar no centro da cidade - na Vila Brasil... (a molecada da periferia tem os sons nos celulares e sabem as letras... e pensem, tocar no centro da cidade DELES causa alegria)... e tem mais coisa que acontece por aqui que não tem essa face cosmopolita... gostaria mesmo que as pessoas que ainda não conhecem o trabalho do Rodrigo pudessem trafegar nas pontes de percepção que ele vem traçando ao longo dessa caminhada poética.                      
o contrário também seria legal; que quem já trafega por essas pontes possa perceber outras realidades.
 /
 

Um comentário:

  1. João. O texto tá bem aquilo que a gente vem discutindo ao longo deste ano. gostei da sua marca biopessoal no texto (me identifico muito com esta estratégia) além da postura não-passar- a-mão-na-cabeça que geralmente a crítica de arte no brasil tem por norma.

    parabéns e siga sempre esta senda que por ser arriscada e penosa ainda é a única que nos mantém vivos com o fogo nos estremecendo por dentro.

    ResponderExcluir