terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Hahaha! Saiu o segundo clipe do novo disco do Ogi

João de Carvalho

Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode. ... É por isso que somos todos bricoleurs; cada um suas pequenas máquinas. (Deleuze e Guattari)


Rá!, o novo álbum do rapper paulistano Rodrigo Ogi, é com certeza um dos melhores lançamentos deste ano. O disco tem uma sonoridade riquíssima e a caneta de Ogi está mais ágil do que nunca. Suas crônicas são construções cinematográficas, que envolvem sempre muitos personagens em ações de muitos movimentos. Obra esquizofrênica - de muitas vozes na cabeça -, como já é natural na estética de intertextualidades do hip-hop, mas bem mais densa do que o comum. Reflexo de um narrador que luta para "acordar os órgãos de seu corpo", contrariando o simples uso do corpo que o capitalismo nos impõe (Deleuze e Guattari, em "O Anti-édipo - Capitalismo e Esquizofrenia"), um "corpo/máquina sem órgãos", com a função desejo atrofiada... A primeira faixa é uma "rádio/narrativa" em que o rapper chega ao consultório para uma seção de terapia.  

Na faixa seguinte, o primeiro rap do álbum, Ogi apresenta seu narrador - que se mistura, mas também se dissolve, na figura do próprio rapper - como um "Aventureiro", em versos como "pois eu sou louco e ligeiro, louco e ligeiro, aventureiro/ e assim a selva cinza eu vou conquistar". Na faixa seguinte o narrador começa a relatar o que vê em seu caminho de desbravador das dores da cidade, em "Estação da Luz". Essa faixa relato de caminhante lembra-me muito duas canções, o "Brejo da Cruz", do Chico Buarque, e "Metrô linha 743", de Raul Seixas. As proximidades do plano formal se dão no trabalho da rima em em "uz" - em relação à obra do Chico - e de uma estrofe que se finda com a localização título - em relação à obra do Raul. Mas existem proximidades de conteúdo, e nesse sentido, de  "vozes da rua" que são registradas nas 3 canções.

Eu já havia, no post passado, chamado a atenção para o clipe de "Trindade, parte 2", um ótimo clipe que se utiliza da técnica de animação, ainda pouco explorada dentro do universo do hip-hop. Pois bem, a chamada de atenção vem novamente para este álbum agora por conta de outro clipe surpreendente. Me refiro ao lançamento de "Hahaha", clipe da canção correspondente à quarta faixa do disco Rá!.




O clipe é simples e ao mesmo tempo criativo. Simula um relato recheado de "aventuras amorosas", contadas para outros homens (Mc's de grande relevo dentro do hip-hop nacional). Ou seja, o rapper se aventurou em um território minado, dificílimo de se equilibrar sem cair em machismos. E, diferente do público de rap de antigamente, a sonoridade e as parcerias que compõe o álbum e aparecem no clipe (Criolo, Emicida, Black Alien...) formam um produto que aponta para um público composto em muito por mulheres, cada vez mais emancipadas e vigilantes. Não é à toa que na sequência filmada com o Emicida ambos aparecem caracterizados como sambistas dentro de um jardim - "Trepadeira", a canção que colocou o Emicida numa baita saia justa, se estrutura somente com nomes de plantas.


Mas o desfecho da história, o cuidado em "se garantir" no lado literário de seu texto, as imagens de contraponto das mulheres rindo da cara do convencimento do narrador, e o sonho, redimem Ogi. Até a performance do Criolo parece meio sem graça, cheia de um constrangimento de quem escuta e percebe o devaneio e o enrosco que o narrador vai se envolvendo. Na realidade todos os participantes do clipe escutam o relato já cheios dessa espécie de constrangimento.

Logo nas primeiras escutas desse som me veio uma outra canção à mente. Mais uma vez me parece curioso uma escuta em paralelo, agora com a canção da freira Jeanine Deckers. O paralelo inusitado é por conta da canção mais famosa da freira cantora, Dominique. Porém a canção de teor religioso, que brinca de maneira "primaveril" com o a sonoridade "nique nique" - primeiro mote sonoro do texto de Ogi - foi convertida de maneira "profana" para o português.  A gravação da freira desbancou até mesmo os The Beatles em 1963, e no ano seguinte foi lançada em português na voz de Giane.


Na versão em português, apesar da ingenuidade do sonho da personagem, que projeta um enredo romântico para seu amor - me chama a atenção a livre apropriação da obra, que se torna ousada ao pensarmos no contexto da original religiosa. O fato é que esse é só o estopim do compositor paulista, que vai dichavando rimas em "ique" na primeira sequência de versos. Depois ainda aparece uma citação ao Simonal - "mamãe passou açúcar em mim" - que mantém o tom de bom humor da narrativa.

Bem, apesar desse respiro pelo lado de Eros, nesse Amor/Humor engraçadíssimo, o disco não se distancia da violência e dos discursos "politizados" do hip-hop, que se embebem de Tanatos. Percebo, para finalizar a reflexão, como alguns instintos de "Amor e Morte" andam se equilibrando em mais de um grande lançamento deste ano. O disco do Chico César - que saiu pela LabFantasma - é outro que me chama a atenção nesse sentido.